quarta-feira, maio 20, 2015

CRÔNICA DA TERÇA - O sonho dos justos

          A lida matutina nos leva bem cedo para o exercício do dever. A cidade acorda em seu ritmo. Pessoas, carros, propósitos, gente, tempo correndo, pensamentos, sonolências, vida. Cada um em seu jeito.
Choveu muito na madrugada de domingo para segunda e muito ao longo do primeiro dia da semana. A madrugada foi bem fria e tudo muito molhado, como ainda está por essas horas, por volta de oito e trinta da manhã. Dia pra se ficar em casa, de preferência.  
Naquela parte da cidade, lugar de comércio intenso, logo ali na Avenida Tiradentes, no centro de Macapá, em frente a uma loja de telefonia, vê-se algo tocante: um grupo entregue ao cansaço, vida que não tem para onde ir, sem casa, sem cuidados, sem carinhos. Entregues a friagem de uma noite e dia chuvosos. Exaustos, certamente, até que encontram um lugar de abrigo, um lugar onde vencidos por tudo, ficam. Um bando, um grupo, um coletivo, seis vidas já bem gastas, quem sabe por maus tratos. Vagando de lugar em lugar.
Há quem possa dizer que o bando, o grupo, por força de estímulos que a mãe natureza impulsiona segue uma cadela no cio, mas quem vai saber se não acompanhar mais da história? Estão ali. Quem passa acha curioso o ajuntamento. Uma fila recostada num muro. Pela imagem, por sua composição, qualquer registro no tempo mostraria, ao menos naquele momento, a paz conquistada. Mesmo que o corpo reclame, mesmo que todos e todas ali deitados e deitadas no chão “saibam” a vida seguirá assim, sabe lá por quanto tempo. Até quem sabe a próxima esquina, até quem sabe um próximo encontro dramático, quem sabe encontrem alguma solidariedade, quem sabe...
Mas já é dia. Daqui a pouco certas pessoas vão atrapalhar nosso sono, vão nos colocar pra fora daqui e vagar é o destino conhecido. Quem sabe o grupo se mantenha. Quem sabe não exista mulher a seguir, mas somente um protegendo o outro. Encontramos essa saída, tem funcionado. Já passamos por cada situação! Ontem como noite de frio, hoje como dia sem diferença. Quem viesse nos perguntar diria que a vida não é nada fácil. Nascemos, nem sabemos o porquê. Vivemos assim, muitas vezes no abandono. Somos criaturas que se um tanto mais de atenção e cuidados seriamos grandes companheiros, amigos, protetores. E quem não precisa disso tudo? Já viram nosso olhar o que carrega e mostra? Pararam pra falar conosco na rua? Acham isso estranho vindo de um de nós? Mas que estranheza vocês nos provoca, sempre sem jeitos e sensibilidades para conosco. Afastar bruscamente, gritar, maltratar é um tipo de fraqueza que já percebemos faz tempo, em vocês. Aprendemos na carne como a selvageria se mostra. E não somos nós os selvagens ou irracionais. Nossas espécies são somente diferentes.
Mas a conversa está boa. De uma consciência pra outra. Outro dia quem sabe nos vemos por aí. Deixa ver se ainda ficamos um pouquinho mais por aqui, do lado mais protegido, onde não é tanto do que não temos que sentimos falta. Nesse momento somos todos iguais nesse recanto de mundo.


Luciano Magnus de Araújo
Lma3@hotmail.com 


Foto: autor desconhecido. Fonte: Facebook.

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