quinta-feira, junho 30, 2022

Resenhas de leituras #13

       Textos são construídos nas tentativas da escrita, na ousadia da criatividade, nos limites da expressão ou mais além de tudo isso, ou quase. Ao leitor cabe reunir alguns desafios no papel de decifrar cenários. E há perguntas possíveis: o que é a vida de um personagem? Até onde podem ir as facetas de um personagem? Quanto vale uma vida na ficção? Mais que uma vida nesse lado de cá da (re)existência?

      Em Vida à Venda (Edição Liberdade, São Paulo, 2020, 255p.), Yukio Mishima propõe um intricando desafio ao protagonista Hanio Yamada: “Vendo minha vida. Use-a como quiser”. Após uma tentativa suicídio, o desenrolar dos acontecimentos ao longo do romance são postos tendo o personagem as tais ‘vivências’ nesses eventos em busca da morte, sempre de formas as mais inusitadas e conturbadas.

O romance publicado em fins da década de sessenta de forma irônica, com graça e desencontros do personagem, apresenta os descompassos para realizar o objetivo de dar fim a própria vida e suas impossibilidades, ainda que a disposição deixe por um fio a vida do protagonista. Parece que nem sempre desejar é poder. Importante destacar uma passagem da obra:

(...) – Senhor Hanio Yamada?

– Sim, sou eu.

– Li o seu anuncio no jornal.

– Tenha a bondade de entrar.

Hanio conduziu a recanto acarpetado de vermelho onde havia uma mesa preta, condizente com um profissional de design.

O ancião provocava com a língua dentro da boca um sibilo de cobra. Curvou-se com polidez e foi senta-se em uma cadeira.

– Foi você quem pôs a vida à venda

– Sim.

– Vejo que é jovem, e leva boa vida. Por que pensou nisso?

 – Deixemos de lado as perguntas desnecessárias.

– Pois então, por quanto venderá a sua vida?

– Bem, depende. Quanto está disposto a pagar? (...)

            A trama nos conduz a supor o que pode elevar alguém a deixar nas mãos de outros a resolução daquilo que não conseguiu por conta própria. Se o intento da obra é o estranhamento da proposta da vida à venda e a relatividade da existência nos tempos atuais, algumas boas imagens e reflexões são provocadas.

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        A reunião de contos Carrosel sombrio e outras histórias (TAG, Harper Collins, Rio de Janeiro, 2020, 479p.), de Joe Hill compõe um conjunto intrigante de textos, que para quem aprecia o gênero literário de terror, pode ao longo de treze contos, mergulhar nas imagens de uma mente criativa e inquieta. Não são gratuitas essas distinções e não é igualmente gratuita a sugestão de leitura para quem costuma ler o gênero do horror. Joe Hill exige do leitor atenção. Seus textos pedem acompanhamento e retornos, e é justo ai o desafio posto ao leitor, por um autor que, nessa edição, oferece na abertura da obra indicações de suas referências de apreciador do gênero, portanto é uma obra de escritor que não se esquiva de mostrar de onde veio, sua descendência literária. E nesse sentido, literalmente desbravando referências, mas igualmente deixando claro sua linhagem de vida. Hill é filho do consagrado escritor represente da ficção sobrenatural, de terror, ficção científica e suspense Stephen King, com quem divide a escrita de dois contos que fazem parte da obra. Há ainda na obra a liberdade criativa até mesmo na diagramação de textos, quando no conto O diabo na escadaria a forma como texto é apresentado visualmente segue ousadas formas, diversamente do onipresente texto linear. Vale ver e ler. Ou mesmo como no conto Twittando no circo dos mortos à maneira do limite dos 280 caracteres da rede social segue a estética e dinâmica da escrita

Ao final da obra temos ainda os comentários sobre os contos e agradecimentos que para aqueles que leem obras de ficção também estudando processos criativos.  Acaba por ser um bom conjunto de comentários dos processos e motivos de criação.

*** 

            O titulo do livro é provocador e sugestivo: Ela se chama Rodolfo (DBA Editora, São Paulo, 2022, 263p.), de Julia Dantas. Ela-ele quem, afinal? O livro assim inicia: “Era uma vez um homem”. E dai se desenrola a narrativa desse homem, o protagonista do segundo romance de Julia Dantas, Murilo, nas idas e vindas de suas convivências com o (sem querer adiantar detalhes da trama) quelônio Rodolfo e sua saga cotidiana em buscar um novo lar e cuidador ou cuidadora para a criatura.

Na sucessão de eventos seguem Murilo e Rodolfo como a viverem paralelos na inconstância sobre como se situar diante dos próximos passos entre pessoas, irresoluções e tentativas. Em meio a diálogos com Gabriella (ex-cuidadora de Rodolfo), Camilo (morador que aparece no apartamento que pertencia a Gabriella e torna-se importante nas idas e vindas dos dias de Murilo) e sua irmã Lídia, temos os indicadores de um protagonista que é levado nos movimentos das falas e sugestões desses e outros que aparecem ao longo da trama sem maiores expressões. Murilo transparece a figura daquele que a vida não se firma e nem se define, mas segue. A escrita de Julia Dantas é fluida e prazerosa. Por vezes aparecem passagens em que os personagens são mais reflexivos, assim como, certamente, nos ocorre, nas intermitências dos dias, mais ou menos modorrentos. Parece que em meio a tudo é muito mais Rodolfo quem cuida de dar algum pequeno sentido à vida de Murilo que o inverso. Vale ler. 

sábado, junho 25, 2022

Quantos instantes


Sábado quente. Depois das dezesseis horas começam a aparecer umas nuvens e pingos pesados de chuva que o vento irá logo levar como acontece por essa época. A nova ninhada cria suas novidades descobrindo os cantos de mundo levados pela curiosidade. Entre si brincam, correm, buscam juntos, se separam. O som da água caindo do vertedouro da caixa de água que abastece a casa anuncia já que está cheia. Desligar a bomba. Sopra um vento forte, vai mesmo levar a chuva pra longe. É preciso beber água, dia quente que o banho recém tomado não resolve de tudo. Redes sociais paradas. Começa a cair neblina. Lá fora um bichano desgarrado chama pela mãe. Hora some o azul do céu, hora é coberto de cinza. Goles mais constantes de água. E alguém bate lá fora. Abrir o portão interno de saída de casa é criar expectativas no coletivo de vida comum. Comida? Brincadeiras? Conversações? Acorrem mais próximos. Igualmente curiosos sobre quem lá fora.

Azul mais vasto acima. Longe segue a promessa de chuva no cinza andante. Mais um portão aberto e quem na visão da rua? Ninguém. Vai lá longe pessoa a carregar um carrinho de alguma coisa. Já distante, nem vale chamar. Em sentido contrário em aproximação outro carrinho, um vendedor de picolés com inscrição em branco e seu sino estridente chama a atenção da vizinhança. Agora se resolve a velha curiosidade de sempre ouvir do lado de dentro de casa esse sino a chamar. Está quase à frente de casa. Calor e gelado se combinam. Aceno e já direciona em aproximação. Quais sabores o senhor tem aí? Responde abrindo o recipiente que se ilumina e segue enumeração que vai se substituindo pela minha observação. Peço para esperar e vou buscar algum dinheiro. Escolho cinco unidades, uma de cada sabor existente na caixa. Pergunto como estão as vendas. Tem rua que vende melhor, tem rua que nunca vende. Essa é aqui é uma. Que nunca vende? É. Agora o senhor já tem um freguês nessa rua. Sempre que passar por aqui, diminua o passo e faça o sino chamar. Assim tenho tempo de alcançar o senhor. Tá certo. Mas posso bater no portão, se quiser. Pode ser também. Melhor guardar logo pra não derreter. Desejo sorte. Agradece. Sino a chamar, fecho o primeiro portão. Do lado de dentro mais expectativas de pequenos olhos. Abro e fecho o segundo portão, mãos geladas, escolho o primeiro a refrescar o mundo interior. O tilintar já vai longe.

Acomodo-me novamente diante da leitura em meio a sertões e nordestes. Céu cinza novamente e sem vento. A música ambiente caminha nas terras Gerais, os peixes em milagres. O pensamento dividindo em três eventos, quatro, ainda ligado no sino e na sina cotidiana que segue. E pensando na lida do senhor de gelados, em tardes quentes como a de hoje, nos dias de chuva... A neblina volta. O incomodo resguardado. Leitura pausada e o olhar distante sem espaço e tempo. O fragmento de momento que desconversa com a realidade ainda que dela seja cifra. Dois pares de pequenos olhos encontram os meus numa distância de quase dois metros. Segundos e se distraem por pouco. Somos dois. Já menos calor. Abaixo o livro, torno a buscar outro motivo gelado. Alguém bate lá fora...

 

Imagem: https://laart.art.br/blog/o-que-e-arte-abstrata/