quarta-feira, maio 27, 2015

ARTIGO DA QUARTA - Conscientização em tempos de intolerâncias

          Quanto vale um indivíduo consciente? Em um atual mundo onde as bravatas são explicitas indicações da pobreza cultural e política de camadas da população que teriam plenas condições de fazerem o movimento diferente daquele que se aproxima e avizinha da mediocridade. Quanto vale um individuo consciente?
            As realidades, tendo em vista que a perspectiva é pluridimensional, nos permitem observar o panóptico da vida social como num filme, mas nada linear. Passa diante de nossos olhos enredos e dramas, conjurações e gritos. Entender o novelo e seu emaranhando das práticas sociais é o desafio corrente. Mas é bem certo que o cotidiano sufoca o individuo. Quando sintonizamos certos canais de televisão, quando compramos certas revistas e jornais, quando defendemos e compartilhamos certas opiniões como se fossem nossas, originais, muitas vezes não nos damos conta do quanto somos coniventes com certas conjunturas. Os movimentos coletivos hoje são condições a serem atentamente observadas. As práticas institucionais são desdobramentos a serem cuidadosamente observadas. Devemos entender que o membro de uma organização não é somente uma individualidade, ele representa também uma ideia, uma predisposição, mesmo que hoje tenhamos hibridismos, mesclas, coisas impuras nas ações desses coletivos, sejam políticos, burocráticos, estatais, culturais, econômicos. Recai para todos e cada um o desafio da interpretação. Mas como interpretar, como entender aquilo que é de difícil entendimento tendo em vista ser muitas vezes criado para não ser fácil, claro, transparente? Permanece a questão, quanto vale um individuo consciente?
            Mas o que seria ser consciente em dias de hoje, século XXI, num pais dito emergente, numa economia que inclu-exclui, numa realidade política que caminha entre o claro-escuro, drama-comédia, numa dimensão social que conjura-afaga quando é conveniente?
            A politica enganosa do voto, o desserviço de poderes públicos cuja representação é pífia, quando nenhuma; a aura de ordenação de um Estado em ampla atividade manipulada por interesses abortando o ideal do bem comum. Uma lista de indignações pode seguir quando se coloca na mesa a insatisfação do coletivo, de certas camadas do coletivo. E até mesmo a natureza da insatisfação precisa ser relativizada. Algumas parcelas dessa população trilham caminhos que merecem observações. Qualquer conversa que se desenvolva em mesa de bar, em roda descontraída de amigos e amigas resvala para o tema político-econômico, e em meio às violências tantas. Os argumentos levantados cumprem cartilhas as mais diferentes. O mote sempre será as insatisfações individuais como janelas para se entender apelos de maioria ou de uma totalidade. Argumentos convincentes, convencidos, vividos, especulados, numa ampla gama de cores, são postos.
            Nesse interim toda a violência causada é como o recheio de comida indigesta. A violência que alcança os indivíduos ao serem explorados em seus postos de trabalho, as apropriações indevidas do bem público, o pai de família que é assassinado a queima roupa na periferia, o cidadão que é esfaqueado em seu momento de lazer no bairro nobre, as faltas de infraestrutura básica nas cidades, a representatividade sem valor do político que não vê quem o escolheu, homenagens indevidas em câmaras e assembleias de representação ofertadas a figuras de caráter público duvidoso... Mas, é preciso pensar, o que está como ingrediente fundamental desse cotidiano. Por que existem corruptos? Por que existem assassinos, menores ou não? Por que existe ou resiste esse incómodo entre o que devemos fazer-pensar e não sabemos definir o que seja? Há uma base profícua para a intolerância nesse não saber, fortalece-se certa revolta como revide e vingança nesse contexto.
            O incomodo posto ainda não está sendo refletido, pensado em suas causas. Pensamos e sofremos as consequências, mas as causas estão ali, gritando, evidentes, mas ainda fazemo-nos de olhos cegos-ouvidos surdos. Causas pequenas compõem vastos dramas. A morte de alguém pode repercutir urgentemente nos meios de comunicação, a morte de vários ‘ninguéns’, no máximo, tornar-se-á estatística fria e sem nenhum incômodo. Quem defende o assassino menor pela sua origem? Quem busca a origem sociocultural desse menor? Quem busca o maior abandonado pelas politicas publicas ineficientes. A carta maior quando diz sobre todos os direitos fundamentais, direitos, quando esses são de fato realidade? O discurso corrente hoje é penalização; pena para quem, cara pálida? O cidadão comum deixou, faz muito tempo, de ser inocente. Repartamos a culpa igualmente. Somos todos culpados pela propriedade, pelo individualismo, pela opinião de todos os dias, pelo conforto egoísta, pelo-não-fazer-por-não-ser-culpa-minha-nem-da-minha-conta. E assim posso ser acusado de resvalar no mundo comum, comunista, de todos igualmente. Será que estamos preparados para isso? Muitos dirão, como se fizessem o sinal da cruz: “Deus me livre de uma sociedade comunista-socialista”. Digo: “Deus me livre de um mundo competitivo, egoísta, de indivíduos apartados como é esse nosso”.
Mas isso repercute para quem quando se fala assim? Um indivíduo livre e emancipado veria tudo isso de maneira diferente? Ainda uma velha utopia de uma sociedade contrária à imagem do homem sendo o lobo do homem é algo irrealizável? Que ilusão é essa que ainda temos que vivemos em uma sociedade ordeira? Vivemos um modelo corrompido socialmente, um silencioso caos de procedimentos que vai nos calando todos os dias. Somos nós os agentes da violência. O bandido repercute nossa medida de pura inconsciência. Somos-estamos num momento ainda imaturos, revoltados, inconsequentes em nossa cidadania. E quando uma incoerência repercute em nosso meio, repito, vemos unicamente as consequências.
Para não ser um monólogo inspirado, converso com Paulo Freire na obra Conscientização - teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de
Paulo Freire (Centauro, 2001, p. 23-24) quando diz: “Os políticos populistas não compreendem as relações entre alfabetização e ‘conscientização’. Obcecados por um único resultado – o aumento do número de eleitores –, deram somente um apoio muito escasso, do ponto de vista político, a esta forma de mobilização. Na realidade, raciocinavam de maneira muito simplista ante o problema. Se um educador de fama oferece a possibilidade de alfabetizar em muito pouco tempo o conjunto do povo brasileiro, ideal este desejado durante décadas por todos os governos, por que não dar-lhe o apoio do Estado? Por isso não compreenderam a agitação criada ao redor da pedagogia de Paulo Freire pelos grupos de direita. Os políticos viram o Movimento de Educação Popular como qualquer outra forma de mobilização de massas: em função de suas preocupações eleitorais; e propuseram uma revolução verbal e abstrata, aí onde era necessário prosseguir a reforma prática em curso. O educador, preocupado com o problema do analfabetismo, dirigiu-se sempre às massas que se supunham ‘fora da história’; a serviço da liberdade, sempre dirigiu-se às massas mais oprimidas, confiando em sua liberdade, em seu poder de criação e de crítica. Os políticos, ao contrário, não se interessavam pelas massas, senão na possibilidade de estas serem manipuladas no jogo eleitoral”.
Nesse sentido que a política, a prática politica cotidiana seja emancipadora, libertadora, entendida, compreendida, problematizada. E ela está em todos os lugares, indistintamente, em todas as escolhas, em todas as opiniões, em nós quando dormimos e acordamos para um novo dia. Que pode ser mais um dia aprisionado no mundo das ilusões e fantasias de bem-estar corrompido e individual; ou, por outro lado, pode ser o resultado do distanciamento dessas manipulações, sendo agora um individuo novo, um sujeito atento e ativo na construção de um novo mundo, não somente para si, mas para todos, indistintamente. Assim, quanto vale um individuo consciente? Esse indivíduo vale o sonho e acordar para a liberdade. O valor desse individuo não é de ser comprado nem vendido, é ser sendo sabedor de si-e-dos-outros.

Luciano Magnus de Araújo

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