terça-feira, abril 04, 2017

Microcontos, I


Seguimos observando o cotidiano, paisagens, pessoas, maneiras, jeitos. Contemplações que tomam os movimentos da vida como chão do olhar, para lançar outros vãos para os ares do tempo mais além...

Edson
        Mais uma vez batera no portão da mesma pessoa que procura sempre que os dias não seguem bem. O de dentro com que espirito viria. O de fora já sabe sua condição. Pedir ajuda, a humilhação dos que não tem, dos que tem muito pouco nessa vida que seja dono. Espera a boa vontade do lado de fora. No mundo de erros já nem espera acertar em nada. Mesmo tendo vários filhos, precisa ver jeito de sustentar as oito bocas. Entre rebentos maiores e menores, todos os dias eram de buscas e quase encontros. E esperava sempre o melhor. O de dentro já avisava e pedia um minuto para já atender e abrir o limite da propriedade. Pensa que mais uma vez reconhece a voz e nem sabe como ajudar, final de mês, nem mesmo os que julgam ter estão assim tão folgados de haveres. Como de costume o portão é aberto. A pergunta que vem do dentro é típica: como estão as coisas, Edson? Não estão bem, vim aqui pedir ao senhor que arrume qualquer coisa, uns sete reais, qualquer coisa. Final de mês, Edson, difícil. Hoje não tenho nada, semana que vem quem sabe. Mas não dá pro senhor arranjar ai um quilo de feijão, farinha pra fazer alguma coisa lá em casa? Por um momento o lá de dentro pensa, dispensa já esvaziando. Pode ser macarrão? Pode ser sim, senhor. Espere um pouco. Entra, deixa o portão entreaberto, leva a chave. Vai pensando nas necessidades alheias, agradece por ter uma vida que não apresenta tanta falta. Busca no armário acostumado a ser abastecido sempre em data regular. Encontra o pacote de macarrão, uma sacola plástica, sente um tanto de alivio por poder ajudar, mas não está convencido disto. Retorna, encontra o mesmo homem envelhecido pelo sol, pelos dias desarranjados. Ele de fora ainda sorri um jeito que mostra rugas de uma juventude que não sabe ser. Diz que o carrinho logo ali abaixo da calçada foi alugado para carregar entulhos, mas que está difícil conseguir trabalho. Carro pesado de duas rodas. Supõe todo esforço do mundo para tão pouco ganho. O de dentro roga sorte, que as coisas vão dar certo. É, vão sim, senhor. Amarra o saco plástico num canto qualquer do carro de madeira. Vê-se o esforço, dá uma volta em si, segue na direção da necessidade. Vai se afastando, sabe lá o que pensa. O de cá se acha no mundo como que a agradecer e lamentar certos destinos. Mas quem sabe o tempo guarda como resposta...


Propriedade móvel fragilizada
              Na subida da ponte a surpresa. Dentro do carro, distraída em pensamentos, confunde os sentidos, estão ali adiante parados ou em movimento, sem resposta. Resposta veio. Choque brusco: um, dois, três. Não mais colidiram por aquele mais adiante logo brecar o carro importado prontamente. Sinistros urbanos. Trânsito parado, descem ao chão da tensão. Um automóvel que vai passando aconselha como a intimidar:
         - Resolvam o problema de você mais lá na frente, o trânsito quer passar.
       Foi assim, foram mais pro acostamento. Segunda descida. Gentes de três carros. Uma moça, aquela dos pensamentos distraídos, já a imaginar o intervalo no tempo normal da vida. E o dia estava sendo bem escrito. Desses pontos no texto cotidiano que chegam sem aviso na narrativa.
            Do segundo carro, um casal com as expressões nada alheias já cumprem o papel de deixarem o dia com o ar azedo dos acordos sem acordos que não livram um pouco o bolso da quem estava por ali a pensar saber lá onde no mundo.
             - Quebrou né? E o semblante mostra um ar onde tudo pode ocorrer, menos o riso espontâneo.
            Do terceiro carro, o branco importado, um alguém de trajes típicos de pessoa que se julga por si só importante. Trajes, carro, jeito de andar, feições, tudo. Olhou em silêncio como quem a reunir provas nos laudos para a sua justa sentença.
      - Como isso vai ser resolvido, da minha parte seja amigavelmente ou em juízo, tanto faz, sou advogado mesmo.
         - Será resolvido, mas vamos ver tudo. Preciso dos seus contatos.
             E vistoriam mais um tanto os autos. Quadro construído para quem vê de perto-longe. Na beira da ponte estava um rapazinho. Acompanhava como quase todo ser vivente que adora um acidente de verdade. Ouve, vê, não participa. A não ser em sua opinião.
              “Aquele quarto carro lá na frente, freou e ninguém viu, um cachorro na rua pode perturbar”.
         Trocaram números, tiraram fotos. Gente vai pra casa pensando naquela viagem que não mais será.

Erros involuntários erros
              O pedido fora feito diretamente no caixa. Duas qualidades de sushis foram escolhidas, mais uma porção de yakisoba para uma pessoa, somente de carne. Alguma bebida refrigerante. Bem confirmado no caixa, tudo: quarenta reais. Pago com cartão de débito, seguem para a mesa. Antes, porém, observam os trabalhos do rapaz que prepara tudo, com ingredientes à mostra como que a dar um ar de credibilidades com parte dos alimentos sendo preparados a olhos vistos dos clientes. Confirmados os jeitos dos pedidos. Ocupam mesa e esperam vendo imagens na tv afixada na parede, sem som audível. Os minutos passam. Passam mais que o normal. Tanto que veem outros pedidos vir ao salão. Decidem chamar o rapaz que atende, que acumula função de preparos. Mas quem vem mesmo é uma moça. Ah, o pedido de vocês. Já está saindo. Traz os sushis. Depois outro chamado para a bebida. E mais espera. Quase acabando o primeiro pedido, decidem chamar novamente. Ah, está chegando. O rapaz de dupla função passa pela mesa carregando um prato repleto e esfumaçante. Para na mesa logo atrás. Não era pra lá o pedido. Rapidamente refaz o trajeto e era finalmente o pedido. Questiona.
              -Yakisoba pra dois, completo?
              - Aqui é pra um, só carne.
              Pensa e parece que percebe algo errado.
              - Não tem problema
              E sai apressado. Pouco depois é possível notar um clima estranho. A pessoa do caixa era o dono, que advertido pela moça chamou o rapaz de dupla função. O erro fora percebido, por todos. O que fazer? A diferença era de vinte e cinco reais. Mas se os que pediram fossem pagar acentuariam o erro do rapaz. E em tempos de desemprego... Ninguém disse nada a ninguém, mas naquela noite todos tiveram parte no erro e muito que o pensar.

Respiros:
- “...andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá...”
- É preciso criar outros mundos possíveis.
- Você pensa sobre o lixo que produz? Pois deveria! Ele é seu!
- Nós temos direitos e deveres. Conhecemos todos?

- Qual foi sua ousadia de hoje?

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