quarta-feira, abril 15, 2015

Saramago, entre folhas de relva

Pego um livro na estante, “Saramago, biografia” (Leya, São Paulo, 2010), de João Marques Lopes. O biografado é um admirado. Grande mente que viu essas coisas do mundo. Li esse texto em viagem. Mas quem leva em viagem livros, quando se espera tempo pra viver outros lugares? Mas, nada incomum. Pensador inquieto, a obra surpreende, é o homem criativo, nas dimensões do texto e além. A obra é uma conversa constante, vezes intermitentes, inspiração para os dias, e os dias dos dias. É mergulhar em funduras de mundos que podem estar na ilusão do tempo passado, no encontro do admirável.
Li um pouco desse livro em uma paisagem de sonho, um lugar que sempre quis conhecer. E trouxe lembranças do lugar, transgredindo talvez o que nem sei se podia, e hoje reencontro, acordando a obra na estante. No Jardim Botânico do Rio de Janeiro vi imagens de uma vida. Já chegando ao ponto, em meio a tanto que se vê. Acredito até que vi Salomão, o elefante, de
A viagem do Elefante”. E ali, entre relva, e o mais que o tempo resguardou do tempo, brasis, europas, mundos representados em cada pedaço de vida, ali, para o deleite de quem para um tanto pra ver um lugar que viu tanta gente, tantas vidas que se foram. É de sentir cruzar e ser transpassado pelos passantes do passado, como se nunca tivessem ido, ali estão, ficaram, mas sem nos ver, mas, somente, ainda vivendo seus tempos e vidas. Personagens gente, coisas, sentimentos, o tempo como personagem. E veja que epigrafe condizente está na obra de Salomão: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.” (O Livro dos Itinerários).
Saramago sintetiza isso tudo em si, em suas obras, e deixa livre para serem reencontradas.
Acredito que certas lições de outros escritores está em todo escritor. Quem foge a regra? Pessoa está em Saramago? Quem diz que não? Rousseau está em Saramago? Quem duvida? Leia “Manual de pintura e caligrafia”, o fingidor está ali, pungente, num romance ensaiado, num ensaio de romance indicado para quem das tintas tem uma relação criativa.  E assim diria: “Que ficou aí a fazer a palavra ‘salvação’? Nada mais retórico neste lugar e nesta circunstância, e eu detesto a retórica, embora dela faça profissão, pois todo o retrato é retórico: ‘Retórica: (um dos significados): Tudo aquilo de que nos servimos no discurso para produzir bom efeito no público, para persuadir os ouvintes’”. Nada mais certo nesse texto.
A moda do homem é inventar moda, ou está em sintonia com o tempo.  Ver os problemas do mundo como coisas do mundo, das pessoas, de quem vivo está ou já foi, mas estabelecer essa ligação possível. Quem ainda hoje escreve sobre sua vida diária? Em “O Caderno” temos essa tônica, o homem vendo seu tempo, em meio a coisas vivas e idas. O amor por Lisboa, personalidades vistas em relance como vemos todos em nossa volta, mais perto ou distantes. O cronista do tempo parece ser um humilde homem a quem é permitido olhar e ver. E isso não é para todos, não é não! Quem consegue criar cadernos de vivências, escrever, o grande desafio, sintetizar pontos de vista, tem uma felicidade, um ardor, um não sei quê que... E quando trata de biografias nesse Caderno, me permitam uma longa fala de Saramago: Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel. Esta convicção de que tudo quanto dizemos e fazemos ao longo do tempo, mesmo parecendo desprovido de significado e importância, é, e não pode impedir-se de o ser, expressão biográfica, levou-me a sugerir um dia, com mais seriedade do que à primeira vista possa parecer, que todos os seres humanos deveriam deixar relatadas por escrito as suas vidas, e que esses milhares de milhões de volumes, quando começassem a não caber na Terra, seriam levados para a Lua. Isto significaria que a grande, a enorme, a gigantesca, a desmesurada, a imensa biblioteca do existir humano teria de ser dividida, primeiro, em duas partes, e logo, com o decorrer do tempo, em três, em quatro, ou mesmo em nove, na suposição de que nos oito restantes planetas do sistema solar houvesse condições de ambiente tão benévolas que respeitassem a fragilidade do papel. E como não ler Saramago!

Outro entreposto literário. Vendo por aqui (de observar e promover), na distância da escrivaninha onde componho essas breves e humildes duas páginas, novamente a estante, desta vez a virtual, e chamo três obras num comentário-pergunta: qual o pior cego? Diz o ditado que é aquele que não quer ver. Mas o que queria Saramago quando escreveu o “Ensaio sobre a cegueira”? Aqueles acometidos pela claridade em agonia deveriam aprender que é difícil lidar com o novo como condição de vida. Sair da normalidade é algo perigoso. Mas o desafio de aprender a ser em conjunto com outras pessoas igualmente cegas, desconhecidas, construir convivência, é desafiador. No livro o otimismo é posto à prova quando se trata do potencial humano em reunião, ou talvez ainda existam saídas, observando melhor. Nesses momentos é melhor não ver a luta de todos contra todos, melhor ter nascido cego, melhor não estar vivo, melhor ver? Dilemas. Como não ver Kafka, como não
ver Canetti nessa obra. Vale muito ler o livro, vale ver o filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Falando de vidas pegas em surpresa com a certa claridade que cega lembro de outra obra de Saramago, “O homem duplicado”.
Mas dessa vez é nossa visão turva em duplicidade, num mundo de coisas da imagem, o vídeo causa a embriagues de já não saber quem somos. Identificar-se em perder-se em nós-outros. Os outros, em verdade, o outro que o personagem Tertuliano Máximo Afonso acaba por descobri quando se vê na pele de um ator idêntico a si próprio. Quem de nós de certa forma em tempos ditos pós-modernos não se vê ora em outro que os meios de comunicação nutrem, seja como ideal, seja como escravidão de desejos? Quem de nós não poderia ser enquadrado como cegos, mesmo tendo olhos para ver?
Há tantos outros Saramagos em suas obras. Fica aqui a sugestão para desvendar as obras que não foram citadas. As polêmicas “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, “Caim” e “Em nome de Deus” que não falo por falta de espaço, mas que deixo o leitor, a leitora bem encaminhados (as) na estrada da curiosidade. Ah, não esquecendo a transgressão no/do Jardim Botânico, bem não sei se transgressão; mas trouxe de lembranças algumas folhas caídas que formavam a relva em redor. Estão postas e bem guardas entre as páginas da biografia de Saramago. Como convites de retorno. Como belas lembranças no tempo. Até a próxima!

Luciano Magnus de Araújo

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