sexta-feira, outubro 22, 2010

UMA HISTÓRIA: A crônica de um dia, qualquer dia

Qualquer dia nasce com sua promessa. Pode ser que acontecimentos pintem um dia mais ameno ou mais carregado nas tintas. Olhar o dia se desdobrar, ver o que se descortina a frente, ter a presença em histórias no tempo, eventos, breves ou longas passagens de acordo com a atenção. Olhar o mundo e ver, esse é o exercício que venho trabalhando na crônica dos dias, qualquer dia. Dessa forma tudo vale ser observado e na natureza dos momentos, até mesmo a maneira como olhamos influencia a maneira como isso vai ficar no mundo para o passado-presente-futuro seja de que formato for.
Hoje pela manhã. Logo bem cedo, antes da cidade acordar estive em meio a enredos diversos. Caberia um parágrafo, como uma espécie de micro-história para exercitar a síntese e como sugestão para ampliações.
Para quem o dia não terminou: O ritmo daquele grupo logo ali à frente não é o mesmo de boa parte daqueles que decidiram atalhar o sono e descobrir o dia mais cedo. Aqueles ainda estão pelo dia anterior, certamente à noite. Uma ilha solitária ainda no extravasamento daquilo que a bebida pode proporcionar: papos a alta voz, som em competição de volume. Ganham a manhã no desgaste da noite. Hoje irão trabalhar? Certamente não. O rio Amazonas já deve ter testemunhado muito disso.
O pássaro mergulhador: Ao caminhar o corredor, ou sua pretensão de sê-lo, olhava intrigado para a visão do que certamente seria um pássaro. Num momento estava ali, noutro sumia. Mas sem vôo? Só restava a água como mundo possível. E continuava andando. Seus pensamentos estavam em outro lugar até que nova criatura no rio dava o ar de sua intrigante presença. Sumia. Parou um tanto. Esperou. Apareceu a criatura que para ele se confundia: era do mundo de cima ou de baixo desse rio? Estranho. Aparecia, sumia, de um canto para outro. Pensava o que essa ave encontrava debaixo da água, o que desinteressava na parte de cima. Ficou para o observador a curiosidade de saber o nome da ave sumidora. Seguiu a frente...
Entre porcos e homens: Não há tempo para o comércio. O mundo gira em torno de interesses e as coisas, criaturas e entendimentos vão encontrando seus espaços. Ali está posta uma relação desvantajosa. Homens e porcos, quem doma quem? Ainda que os porcos estejam em situação de não terem muitas escolhas. Lado a lado, presos, gritando para que alguém os tire daquela condição humilhante de não serem donos de seus destinos. E quem ali é? Certamente o que mais se aproxima dessa condição de liberdade é um passante que distoa no contexto, olhando tudo como a procurar algo. Fora isso. Tudo está no seu tempo normal. Homens que dominam porcos, que são negociados, que serão separados em pouco tempo, outras histórias de criaturas continuam, assim como a de seus donos. Não fosse o cheiro de tensão desesperada pelos animais, o restante das possibilidades seguiria seu caminho normal.
Para onde irá o navio?: O balançar da embarcação. Alguém espera saída, uma senhora vista de canto de olho certamente guarda muito da vontade de chegar, de ir. Recostada ali na varanda da embarcação olha fixamente para o desligamento. Sua  não permanência ali já era algo resolvido. Precisava chegar logo. Ao que indicava a embarcação, em tempo, estaria em Afuá. Precisava resolver um problema que já fazia companhia a ela, segundo mostrava seu semblante. Seria companhia certa ao longo da viagem. Nem todo balançar faria esquecer, aliás, só seria propicio para isso, pensar muito.
O sono solitário do cachorro de rua: A noite para um dono da rua está ganha. Recostado ali num canto de parede nem totalmente lá nem cá. Mas menos preocupado. A noite é mais tensa, o dia começa, possível é o sono. Não há nada certo. Nem comida, nem casa, nem carinho, nem vida, nem morte. Nada garantido que possa dizer ou pensar... Esses animais pensam sim, diria alguém. Há um conhecimento de mundo pleno que os acompanha. Saberes esses que ninguém domesticado conseguiria dimensionar. Mas agora não penso nisso. Somente guardo esse meu corpo de cão aqui nesse canto como em qualquer outro e deixo passar mais um tempo, para seguir outro e vir mais outro. Abro um pouco o olho e vejo que alguém de outra espécie e na mesma condição que eu se aproxima. Certamente nos reencontraremos no mundo que podemos criar... Fecho os olhos.
Aqueles que limpam a rua: Eles estão ali, por mais que a boa maioria não os veja. Estão lá. O motorista do caminhão desceu por um momento de seu posto. Pude ver pela identificação que se chama Jorge. Foi até o traseira do grande carro certificar-se de algum procedimento. Um colega grita ao longe no silêncio da cidade ainda adormecida. “Dá pra ver que coisa foi boa ontem!” Jorge, o motorista sorri. Volta a boleia, liga o som do carro e pensa: “ainda bem que eu consegui estudar um tantinho mais, não preciso ser o catador de fim de festa”. O mesmo catador da referência ao longe salta à janela: “ontem à noite conheci uma gatinha aqui”.
O comercio exclusivo do coco: Francisco era o único naquela hora a ter seu comércio aberto. O privilégio até dez horas da manhã, quando os outros vendedores de coco iniciavam mais um dia. Ainda havia silêncio na cidade. Estava colocando as coisas em ordem. Por um momento sentou-se e foi sua vez de olhar a paisagem e tomar uma inquestionável e doce água. Estava preocupado com a conta que se venceria hoje. Tinha parte do dinheiro. O celular toca. A conversa dura pouco tempo. Ficou alegre. Mais uma vez olhou o papel da fatura. Falou sozinho: “Mais uma que ganhei de você. Vamos ao próximo mês”.
A Corredora: Ela apareceu num repente, cheia de força, morena, alheia ao mundo, passando por esse mundo. Tinha a força avassaladora da vida, repleta de vida. Não havia mundo a sua volta, mas pulsação. A realidade de toda química e propósito ela realizava, era ela. Passou por mim, seguiu em sua corrida a passos rápidos. Sumiu depois mais à frente. Quando meu pensamento retornou, distraído, fiquei com a paisagem que meu caminhar me permitia. Só por um momento. Me volto a ela em retorno, vem, em aproximação, chega, nada ela vê, passa, some mais uma vez em minha imaginação...
Sentir-se feliz: Num momento senti-me feliz. Como dizer o que é isso? Indo por ali senti-me livre de obrigações, com tempo livre, caminhando na observação do mundo a minha volta. Acho que esse tipo de felicidade tem a natureza do privilégio de ver o mundo, o mundo dos outros em seus movimentos. Ser espectador às vezes pode trazer felicidade. Caminhando leve, olhando para tudo e nada ao mesmo tempo. Não retendo mais do que o olhar quer. A vontade do olhar. Só isso. Feliz de livre. Agora posso simular, pensou.
Um aceno a um conhecido: Logo cedo passou uma pessoa que conheço. Faz tempo que não via. Conheço de longe. Acenou-me, retribui. Foi. Estou indo. Atravesso a rua na faixa de pedestres, aproxima-se um carro.

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